A descolonização “exemplar”

Foi com este bando de inconscientes que se pôs termo a uma obra de séculos, não isenta, como todas as obras humanas, de terríveis defeitos, mas também cheia de grandes virtudes e de grandes êxitos, saídos de sacrifícios sem conta de muitas gerações de portugueses, que se lhe dedicaram com determinação e amor. Foi esta obra que aquele “nai­pe” de criminosos quis destruir. Ficarão a pesar na sua memória, já que de consciência se não pode falar, os milhares de mortos que em Moçambique, na Guiné e em Angola, foram sacrificados em honra dos acordos de traição que firmaram.

Em Moçambique, o miserável comparsa de Almei­da Santos, Soares de Melo, não se aguentou muito tempo como governador-geral. A deterioração rápi­da da situação obriga o governo de Lisboa a substi­tuí-lo, com o pretexto de que se impõe, para a exe­cução rápida da descolonização, a nomeação de um alto comissário que seja membro das Forças Arma­das e que seja investido de poderes muito mais latos do que os de um governador-geral. Após várias hesitações, é nomeado um oficial de marinha, Vítor Crespo, inteiramente desconhecido, que de simples comandante passa a vice-almirante. É, porém, o ho­mem com as “qualidades negativas” indispensáveis pa­ra levar por diante um plano de traição aos seus camaradas, aos seus compatriotas e à sua Pátria. No momento em que parte de Lisboa para Lourenço Marques, estala nesta cidade uma revolta da popula­ção civil, provocada pelo facto de um «jeep» militar, repleto de oficiais do MFA e de soldados, levar de rastos pelas ruas a bandeira nacional e arvorada a bandeira da Frelimo. Os revoltosos tomam a emis­sora oficial e o Palácio do Governo. Associam-se a esta patriótica sublevação os chefes políticos de to­dos os partidos e movimentos locais, todos eles contrários à entrega de Moçambique à Frelimo. Encontram-se entre eles os membros da direcção do Movimento Federalista Português de Moçambique, tendo à frente o Dr. Vasco Cardiga, figura de gran­de prestígio no território. Mais tarde, este facto ser­virá de base à falsa acusação feita ao Partido do Progresso – em que o Movimento Federalista Portu­guês entretanto se transformara – de terem sido os seus dirigentes de Lisboa e de Moçambique a provo­carem a revolta. Ora a revolta foi, de facto, uma manifestação espontânea – e por isso não teve êxito – uma inequívoca demonstração de repulsa contra a entrega de Moçambique a um movimento terrorista que não tinha qualquer expressão representativa no interior do território.

E precisamente pela sua total espontaneidade, não surpreende que o MFA a tenha dominado em pou­cos dias. Estão gravadas as ordens dadas através da rádio pelo Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Costa Gomes, decretando o esmaga­mento de tão legítima sublevação popular por meio de bombardeamentos aéreos e massacres e, se ne­cessário, com o concurso mesmo das forças milita­res da OUA, para as quais chegou a apelar. A tanto desceu a aberração do traidor! Sufocada a revolta, deram entrada em prisões de toda a Província milha­res de pessoas, na sua maioria membros dos movi­mentos políticos representativos das etnias contrá­rias à Frelimo e numerosas personalidades. Foi gran­de o número de mortos, calculando-se que tenha ultrapassado os doze mil. A imprensa de Lisboa como aliás a internacional, minimizou o grave acon­tecimento, classificando-o de pequeno incidente pro­vocado “pelos fascistas”, com a intenção de “sabota­rem o processo de descolonização”.

A situação, embora dominada pela força implacá­vel das fardas de traição estacionadas no território, continuou inquietante para o governo e para os diri­gentes locais do MFA. O alto-comissário – que pru­dentemente se quedara em Luanda até ao completo esmagamento da heróica insurreição – não se atrevia a sair do palácio senão de helicóptero e, segundo se afirma, o seu estado “normal” era a embriaguez. A ideia dos massacres que lhe foi sugerida por Costa Gomes fica gravada na memória de Crespo. As autoridades tinham perfeita consciência de que a população, branca e preta, tinha sido dominada mas não vencida. Impunha-se, assim, quebrar de uma vez para sempre a sua resistência.

Sem que nada, na aparência, o fizesse esperar, no mês de Outubro, um banho de sangue selou o pacto diabólico logo após a instalação do governo provisó­rio da Frelimo e da entrada no território dos 6.000 guerrilheiros que o acompanharam – de resto tão transidos de medo, pela consciência de não serem nada no imenso território e na multidão das cidades, que só se atreveram a aparecer nas ruas acompa­nhados pelas tropas traidoras do exército português. Surgiram, assim, em Lourenço Marques, bandos de pretos drogados e embriagados, munidos de armas de catanas e de latas de gasolina, que matavam e incendiavam, de maneira bárbara e indiscriminada. As tropas portuguesas assistiam impassíveis a estes crimes, afirmando os oficiais que as comandavam que tinham ordens rigorosas para não interferir, pois se tratava de “ajustes de contas entre moçambica­nos”. Os dirigentes da Frelimo afirmaram que não lhes assistia a mais pequena responsabilidade nestes trágicos acontecimentos. Perante tão firme declara­ção só fica uma hipótese e, diga-se desde já, a mais plausível: a matança terá sido organizada pelas auto­ridades portuguesas locais. O alto-comissário, o pseudo-almirante Vítor Crespo, teria dado o seu aval ao plano de um grupo de oficiais esquerdistas do MFA, destinado a quebrar o moral dos seus compa­triotas que segundo se afirmara, preparavam um ataque às Forças Armadas. Milhares de homens, mulheres e crianças, brancas e pretas, foram esquartejados nas ruas de Lourenço Marques. Viram-se corpos humanos pendurados nos talhos da cidade e a avenida que conduz ao aeroporto, na extensão de alguns quilómetros, foi ornamentada com cabeças humanas espetadas em paus. Era tal o número de mutilados que chegava ao hospital Miguel Bombar­da, que os depositavam nos corredores e nos pavi­mentos das salas, a esvaírem-se, enquanto os médi­cos com as batas cheias de sangue e os olhos cheios de lágrimas, procuravam minorar os seus so­frimentos. Ante tão pavorosa hecatombe, o pessoal médico do hospital exigiu, sob pena de se refugiar nas representações diplomáticas acreditadas em Mo­çambique, que o chefe do governo provisório, Joa­quim Chissano, comparecesse no hospital para se dar conta da extensão do crime e de tamanho horror. Perante o calvário que se lhe deparou, Chissano saiu a soluçar, salpicado pelo sangue dos que eram também suas vítimas.

A imprensa de Lisboa e a imprensa internacional limitaram-se a transmitir os comunicados oficiais, dando a entender que se tratara de um “pequeno in­cidente”, perfeitamente compreensível num quadro de passagem do “colonialismo à liberdade”. O número de mortos que, de forma comedida, lamentavam, afirmava-se ser de cerca de 80, a que juntavam alguns feridos, para dar, uma certa credibilidade à informação. Escondeu-se, assim, à opinião pública nacional e internacional que tinham sido barbaramente assassinadas mais de 2.500 pessoas, só em Lourenço Marques, ante a indiferença criminosa das Forças Armadas. Onde se terão escondido os bons sentimentos das comissões humanitárias, os zelos desinteressados dos correspondentes estrangeiros em Lourenço Marques, a piedade e o sentido de jus­tiça dos padres Hastings, tão “espontaneamente” mo­bilizados à mais pequena calúnia, para agora se cala­rem ante a verdade?

Na Guiné, o alferes miliciano e membro do PC, Barros de Moura, juntamente com elementos do Movimento das Forças Armadas – entre eles o capi­tão Barroso, cunhado de Mário Soares – tomam à sua conta o palácio do governo, onde o governador, o então major Fabião, e agora general e chefe do Estado Maior do Exército, aceita todas as condições e dá o seu aval a todas as indignidades e crimes que precedem a assinatura do acordo de independência do território. As milícias locais, constituídas por gui­néus, são desarmadas e começam os fuzilamentos, para abater o moral da população, fortemente con­trária ao PAIGC. Instalou-se, então, depois desta acção preparatória, o novo governo, que escolheu para sua sede a povoação de Medina do Boé, por considerar que Bissau não lhe oferecia ainda as con­dições de segurança mínimas. Estas condições vão ser criadas pelas tropas do PAIGC, apoiadas pelas forças militares portuguesas, através da eliminação de todos os elementos da população guineense que não deixariam de se opor à instalação do colonia­lismo cabo-verdiano. Na ilha das Galinhas, são então concentrados alguns milhares de guinéus, entre eles cerca de 500 chefes tribais, que vão sendo elimina­dos às centenas por dia. Numerosos elementos das milícias e da população nativa, aterrorizados com os acontecimentos, começam a fugir para o Senegal, onde se encontram neste momento algumas deze­nas de milhar. O major Fabião, um pusilânime e abjecto traidor, logo que a limpeza está feita e não podendo aguentar mais a indisciplina das suas pró­prias forças, dá ordem de retirada, não sem a coroar com um acto digno da sua vilania: o de permitir à soldadesca o saque dos armazéns das Forças Arma­das. E esta tropa acanalhada à sua chegada a Lis­boa, em barco, lança pela borda fora fardas, bandei­ras e guiões. Assim acabou a Guiné, sabe Deus até quando, para os portugueses e para os seus irmãos guinéus, traídos por este bando de malfeitores, a soldo de cabo-verdianos, servidores de Moscovo.

Em Angola, a tragédia repete-se. A nomeação do general Silvino Silvério Marques para governador-ge­ral é sabotada em Lisboa pelo general Costa Gomes, mancomunado com os oficiais esquerdistas da Co­missão Coordenadora. Estes, de Lisboa, de acordo com os terroristas do M.P.L.A., preparam amotina­ções de grande amplitude, destinadas a pôr em che­que o recém-chegado governador. A realização, em Luanda, do Campeonato Mundial de Hóquei em Patins é escolhida como o momento ideal para desen­cadear os tumultos. Conhecedor do plano, Silvério Marques transfere o campeonato para Lisboa. Apa­nhados de surpresa, os organizadores da montagem vêm-se obrigados a improvisar. Não conseguem, po­rém, mais do que desencadear um pequeno inciden­te num cabaret da cidade. Chamado a Lisboa para dar explicações sobre esta pequena desordem, o general Silvino Silvério Marques, apesar da evidên­cia da manobra e da insignificância do incidente, viu-se obrigado a pedir a demissão.

Substituiu-o, logo de seguida, já com o título de alto-comissário, o pseudo-almirante Rosa Coutinho, que inicia o desmantelamento de Angola. Minucio­samente industriado pelo PC, o hílare marinheiro instala-se, a princípio, no Palácio do Governo, mas sentindo-se inseguro ante a hostilidade declarada da população, passa pouco depois a viver num barco de guerra, ancorado na baía de Luanda, donde diri­ge, com a maior impunidade toda a série de crimes que culmina com a fixação dos Movimentos guerri­lheiros na martirizada terra de Angola. Delapidações, conflitos sangrentos que causam centenas de mor­tos, o êxodo das populações em pânico, passam a ser o pão-nosso de cada dia. O pequeno incidente, avolumado em grande acontecimento, que serviu de pretexto para afastar o general Silvino Silvério Mar­ques, esbate-se agora, totalmente, ao lado das tre­mendas convulsões causadoras de centenas de víti mas diárias, que são reduzidas por Lisboa a peque­nas e inevitáveis ocorrências no caminho da liber­tação do povo angolano. O “valente” marinheiro limitou-se, afinal, a executar as ordens recebidas do PC com a frieza e o escrúpulo dos profissionais do crime. Quando se realiza a conferência da Penina, o êxito do acordo já está assegurado com a anulação da única força capaz de se lhe opor – a população portuguesa, branca, mestiça e negra, destroçada pe­la dor e pelo medo. Antes da transferência do poder legal, procedeu-se assim à transferência do poder moral, que o legitimava, para o poder imoral que institucionaliza os interesses internacionais na ilegali­dade do crime sistemático. A média de 200 mortos diários é para estas “anti-consciências” um pequeno tributo devido à grandeza da sua traição.

- Fernando Pacheco de Amorim, “Portugal Traído”, Madrid, 1975, pp. 104-112.

posted by Nacionalista @ 4:10 da manhã,

3 Comments:

At 11:47 da tarde, Anonymous Anónimo said...

O Vitor Crespo, no Clube de Pesca Desportiva, não era um desconhecido, pois parava por lá quase todas as tardes junto com o Rosa Coutinho, para uns bons copos de whisky.

 
At 3:00 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Rosa Casaco, amigo de Vicente Reguengo y de don Carlos Arias Navarro.

 
At 5:32 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Libro Quince años en Rusia.

 

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