MONARQUIA E REPÚBLICA (ESBOÇO DUMA TEORIA)

Ia um jornalista nosso adversário quase dizendo a verdade quando escreveu que «o integralismo representa nem mais nem menos do que a doutrina duma República com Rei a diri­gi-la». Esta observação, a que é preciso render uma certa homenagem pela inteligência crítica que revela, iliba-nos da divertida nódoa de absolutistas que a toda a hora nos é assacada, ao mesmo tempo que assinala um progresso na inocência mental em que por via de regra vive mergulhado o espírito dos nossos contendores. Claro que o Integralismo não é de modo nenhum a doutrina duma república, com um rei por chave da abóbada. (…) No entanto, concretizando um pouco mais o sentido que às suas palavras quis imprimir o jornalista em questão, talvez tenhamos que reconhecer que a liberdade teórica das repúblicas só se efectiva e garante à sombra da Realeza, — dentro duma Monarquia, mas das puras, das ver­dadeiras.
Há entre os escritores da Action Française uma fórmula que por si só define o problema. No seu advento ao trono de S. Luís, o Rei de França será, como outrora «o protector das repúblicas francesas». «Repúblicas francesas» são as comunas, são as administrações provinciais, antigamente autónomas, mas agora garrotadas pelo centralismo burocrático, desde a vitória do Estado napoleónico.
(…)
Efectivamente, uma coisa é a República como doutrina política, outra coisa é a República como noção histórica da governança ou do poder.
A doutrina da República exclui a concepção orgânica que antigamente se fazia do facto-república. O facto-república afirmou-se principalmente na Idade Média com as liberdades municipais e corporativas, fundamentadas no direito legítimo do homem a viver e com razão moral no profundo ideal cristão daquela época. É, na verdade, da convergência de tão variados elementos que resulta a necessidade da sua coordenação pela força unificadora da Realeza. Quando a Realeza se estabelece e desenvolve, em que bases é que nós a vemos assentar a sua profunda acção pacificadora? Nas comunas revoltas, no Terceiro Estado em desavença constante com as arrogâncias, por vezes despóticas, do mundo feudal.
Se, à falta de expressão mais idónea, a nós nos é lícito empregar a palavra «democracia», a Realeza é desta forma o único regime estruturalmente democrático que se conhece na história. E dizemos «democrático», porque só a unidade da soberania, como a Realeza a obtém e consolida, realiza o equi­líbrio das classes, sem predomínio, seja ele qual for, dumas sobre as outras.
Detalhando melhor a nossa tese, não se suponha que flo­reamos com ela um paradoxo impertinente! O grande mestre que foi Fustel de Coulanges já sustentava que a «república» só era compatível com a «aristocracia», enquanto que a «de­mocracia» só se acomodava verdadeiramente à «Monarquia». Antes de avançarmos, entendo, porém, esclarecer o significado dos dois vocábulos na linguagem do ilustre historiador. «Foi a Grécia, — dizia Fustel —, que introduziu no mundo o governo republicano, e foi uma classe aristocrática que o introduziu na Grécia». Mais tarde em Roma é a aristocracia que derruba a Realeza, substituindo-a por um Senado que deliberava e por magistrados que executavam as deliberações do Senado. Tanto na Grécia como em Roma, a aristocracia, fundando a república, teve logo o cuidado de afastar a multidão das fun­ções directivas. Mais tarde, no momento em que a república sucumbe, é substituída na Grécia pelos «tiranos» clássicos e em Roma por César que abre as portas ao Império. O que é depois o Império senão um mandato exercido em nome do povo romano?
Eis as razões em que se fundava a teoria de Fustel de Coulanges. São razões que perfilhamos, tão depressa tomemos «aristocracia» como sinónimo de «oligarquia». Realmente, as aristocracias representavam para Fustel, sobre os restantes cor­pos do Estado, a supremacia duma classe, a ditadura abusiva duma casta. Não é outro o espectáculo que nos oferece a Grécia dos tempos áureos. Toda a sua civilização, reduzida ainda ao perímetro estreito de Cidade, descansava discricionariamente na escravatura.
O número dos cidadãos, — dos que discutiam e tinham voto na governança comum, traduzia-se numa minoria insi­gnificante perante o grosso da população condenada a trabalhar para os outros, sob a dureza duma lei tão opressiva como humilhante. Surgiram os tiranos. E Fustel caracteriza-os como «mandatários do povo contra a aristocracia». É o que sucede em Roma, ao desabar da República. (…)
Percebe-se que, restringindo os privilégios excessivos dos barões feudais, a Realeza nunca poderia contar com eles como colaboradores pacíficos e submissos. Evidentemente que care­cia de um apoio, — e dum apoio seguro. Onde é que a Rea­leza o encontra? Encontra-o nas Comunas, encontra-o nas Corporações, — no povo miúdo e obscuro que cresce, não revo­lucionariamente para a sua imposição violenta, mas para a conquista das suas franquias, das suas isenções, das suas liberdades, enfim. A autoridade real, numa guerra de séculos quase, defendia, no próprio interesse, o equilíbrio social da preponderância exagerada dum dos braços do Estado sobre os demais. (…)
As lutas da aristocracia contra a Realeza documentam largamente o nosso ponto de vista. Entre nós, já no espraiar da Renascença, como explicar, senão assim, a política de D. João II contra a casa de Bragança e os fidalgos, seus sequazes? O fenómeno que se verificava em Portugal, verificava-se lá fora, — em França, por exemplo. Em 1481, nos Estados Gerais de Tours, quem invoca a soberania inicial da nação é um orador da nobreza, Felipe Pot de la Roche. Em contraste, o cónego Jean de Rély, representante do braço do povo, incita o monarca ao exercício pleno da sua autoridade, acrescentando que o ofício do rei é levantar os pobres da opressão («rélever les povres de oppression!»).
(…) A natureza oligárquica das democracias modernas ainda não há muito que a demonstrou uma pena insuspeita. Refiro-me ao profes­sor Robert Michels, da Universidade de Turim, no seu conhe­cido livro, traduzido para francês, — Les partis politiques.
Também assim o entende Georges Sorel, — o notável teó­rico do sindicalismo francês, ao caracterizar a democracia como um governo de classe contra as outras classes. Dos ensina­mentos de Georges Sorel deriva uma das correntes mais curiosas e mais positivas do pensamento contemporâneo. Estabelecida a incapacidade orgânica dos sistemas democráticos para resolver a questão social pela sua condição simultaneamente plutocrática e parlamentarista, ao proletariado só resta a Revolução ou o Rei. Georges Valois, ao colocar o dilema, examina-lhe os termos detidamente. Daí a hipótese da Monarchie-ouvrière, que nos meios operários mais esclarecidos vai alargando o seu prestígio e a sua influência.
(…)
Descendo da teoria aos factos, reconhecemos que nas crí­ticas de Georges Sorel à democracia ressurgem as considerações que motivaram no campo da história a atitude de Fustel de Coulanges. O predomínio dissolvente dos partidos sobre as legítimas aspirações da colectividade equivale às antigas que­relas da Nobreza e do Clero contra a supremacia neutralizadora da Coroa. Há uma diferença, no entanto, que é de justiça destacar. Nunca, a não ser em raras circunstâncias, as discórdias das classes privilegiadas atentaram contra a própria constituição do Estado. (…)
Não sucede outro tanto com os partidos políticos, — con­sequência da liberdade metafísica dos utopistas do 89. Não chegam a ser órgãos do Estado, pois que não passam de ele­mentos parasitários, mantendo-se à custa da corrupção e do favoritismo. O poder, quando o alcançam, sequestram-no em seu benefício exclusivo, como se fosse coisa conquistada. Por intermédio dos mil tentáculos duma burocracia opressiva e inerte, nós vemo-los imporem-se na sua minoria atrevida e insaciável à colectividade escravizada. (…)
O Absolutismo triunfa sem reservas no século XVIII. É conveniente acentuar que o Absolutismo não é, em todo o caso, a vontade caprichosa do Soberano, — o «bon plaisir du prince». «Na Monarquia absoluta, — escreve Amédée Bonde no seu Droit Constitutionnel —, o monarca reúne em si todos os poderes…; ele faz a lei, mas a lei promulgada por ele obriga-o tanto como aos seus súbditos»
*. Não passa dum ilusório engrandecimento do poder real o que o Absolutismo lhe confere. Destruindo todos os organismos intermédios, o Absolutismo deixa apenas o Estado na presença do indivíduo, despojado já da rede miúda das associações domésticas e econó­micas, cuja eliminação Royer-Collard tanto lastimava. É o conceito romano do Poder que ressuscita integralmente. E no dia em que o soberano for derrubado por um vento revolucio­nário, a posse do país torna-se pronta e fácil, mercê do exces­sivo estadismo que, julgando aumentar o prestígio dinástico, só o enfraquece e ameaça de morte.
Compreende-se já como o Estado absolutista do sé­culo XVIII antecede logicamente o Estado metafísico e todo-poderoso das modernas democracias. Esse Estado é o Estado napoleónico, — insistimos —, baseado não na noção histórica da autoridade, derivada da Família, da Comuna e da Corpo­ração, mas no simples conceito materialista da força e do domínio. Eis porque, desfeitos os órgãos naturais da sociedade, só pela burocracia e pela centralização o Estado napoleónico se mantém e defende na fragilidade evidente dos seus alicerces. (…)
Deste modo, só a Monarquia, restituída à sua verdadeira essência, pode restaurar as velhas liberdades municipais e cor­porativas, que constituíam a estrutura democrática, reconhecida por Fustel de Coulanges à Realeza. Com a democracia, — dou­trina e constituição jurídica, com essa é que jamais se conse­guirá obter, por culpa de nascença, um mínimo de descentralização. Precisamente, nas repúblicas é que o despotismo administrativo se torna cada vez mais vincado. Prova-o a própria Suíça, que a mitologia política em voga nos apresenta como uma república-modelo, mas onde a tendência centralizadora cresce de ano para ano.
(…) Confunde o Absolutismo funções directivas com funções admi­nistrativas. Exigindo para o Rei o exercício independente da suprema magistratura, a verdadeira Monarquia orbita-lho, porém, pelo federalismo económico e municipalista. «O Rei governa, mas não administra». Herdada de Gama e Castro, tal é a fórmula política do Integralismo. (…)
Aqui está por que não errava muito o jornalista nosso adversário quando há dias, em conversa amena sobre Inte­gralismo, nos apresentava como desejando uma república com um Rei a dirigi-la. (…)
— António Sardinha (Setembro, 1918)
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* Paris, 1914.

posted by Nacionalista @ 8:43 da tarde,

3 Comments:

At 2:45 da manhã, Blogger Mendo Ramires said...

Este fundamental texto doutrinário está publicado em «Ao Princípio Era o Verbo», de António Sardinha. Livro obrigatório, que existe em duas edições (encontra-se, nos alfarrabistas, a 2.ª — das Edições Gama).

 
At 11:56 da manhã, Blogger Francisco Múrias said...

Muito bom trabalho, parabéns.
«Estabelecida a incapacidade orgânica dos sistemas democráticos para resolver a questão social pela sua condição simultaneamente plutocrática e parlamentarista, ao proletariado só resta a Revolução ou o Rei.»
Ou a lei, acrescento eu.A Noção de Estado de Direito é violentamente antiparlamentarista, antiplutocrática e antirevolucionária.O que caracteriza o parlamentarismo é que a soberania está no parlamento.A soberania é o poder de fazer leis ou alterar leis. O direito, através do Estado de Direito,«rouba» ao parlamento este poder.Como? Através da questão da aplicação da lei no tempo:
uma lei só pode ter efeitos após a sua entrada em vigor, não pode ter efeitos retroactivos.Os direitos criados pela lei antiga não podem ser revogados pela lei nova.A lei devia servir para proteger a sociedade existente e não para criar uma nova.Ora o direito tem como função defender os direitos:o que é meu,o que é seu o que nosso:o que existe. O Estado para organizar essa protecção.

 
At 5:28 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Carta de D. Miguel repudiando a Concessão de Évora-Monte
Bem se pode dizer que se trata de um documento dentro de outro documento.

Viviam-se os primeiros anos de Novecentos, em plena ditadura de João Franco. Tempos conturbados para Portugal, com a progressiva afirmação da oposição a um desacreditado governo de iniciativa real, manifestada pela agudização das tensões sociais e políticas, envolvendo os sectores regenerador, progressista e republicano, numa conjuntura que muito em breve culminaria no dramático desaparecimento do próprio regime monárquico.

Extraído, na sua grafia original, do jornal de tendência legitimista "A Nação", na sua edição de 20 de Junho de 1907, e publicado na sequência de graves tumultos na capital, o articulista na sua Chronica, apresenta a transcrição da Carta de D. Miguel em que este repudia os termos estabelecidos pela Concessão de Évora-Monte, recordando e enaltecendo a sua conduta, apontando-a como exemplo a seguir no meio da desordem em que o País se encontrava mergulhado.
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CHRONICA
«Faz hoje precisamente setenta e tres annos que El Rei Dom Miguel I, desembarcando em Genova, protestou à face da Europa contra a violencia da Quadrupla Alliança que se impor á vontade nacional, obrigando-o À custa de traições, de subornos, de toda a opposição no campo da diplomacia e da política, a abandonar a corôa de Seus Maiores e a ir pobre, mas rico de sentimentos generosos, a peregrinar por terras extranhas, comendo o pão do exílio, esmolado pelos seus fieis portugueses e por alguns Principes de generosa e reconhecida amizade. A pobreza não prejudicou a dignidade do Augusto Exilado. O seu procedimento foi o mais brioso, podendo servir de exemplo aos homens de hoje para eventualidades semelhantes, ainda que não sejam revestidas de manto da indigencia.

Transcrevemos o notavel documento:
"Em consequencia dos acontecimentos que Me obrigaram a sair de Portugal e abandonar temporariamente o exercicio do Meu poder; a honra da Minha Pessoa, o interesse dos meus Vassallos e finalmente todos os motivos de justiça e de decoro exigem que Eu proteste, como por este faço, à face da Europa, a respeito dos sobreditos acontecimentos e contra quaesquer innovações que o governo que ora existe em Lisboa possa ter introduzido, ou para o futuro procurar introduzir contrarias às Leis fundamentaes do Reino.

D’esta exposição pode-se concluir que o Meu assentimento a todas as condições que Me foram impostas pelas forças preponderantes, confiadas nos generaes dos dois governos de presente existentes em Madrid e Lisboa, de accordo com duas grandes Potencias, foi da Minha parte um mero acto provisorio, com as vistas de salvar os Meus Vassallos de Portugal das desgraças que a justa resistencia que poderia ter feito, lhes não teria poupado, havendo sido surprehendido por um inesperado e indesculpavel ataque de uma Potencia amiga e alliada.

Por todos estes motivos tinha Eu firmemente resolvido, apenas tivesse liberdade de o praticar, como cumpria à Minha honra e dever, fazer constar a todas as Potencias da Europa a injustiça da aggressão contra Meus direitos e contra a Minha Pessoa; e protestar e declarar, como por este protesto e declaro, agora que me acho livre de coação, contra a capitulação de 26 de maio passado, que Me foi imposta pelo governo ora existente em Lisboa; auto que fui obrigado a assignar, a fim de evitar maiores desgraças e poupar o sangue de Meus Fieis Vassallos. Em consequencia do que deve considerar se a dita capitulação como nulla e de nenhum valor."

Génova, 20 de Junho de 1834

Dom Miguel

Está bem patente o zelo pela Lei, que sempre respeitou, pela soberania nacional que consubstanciava, pelos interesses d’este povo que d’ahi para o futuro lhe forneceu os meios de subsistencia. Não temia a pobreza, abraçava-a certo que cumpria um dever.

Foi para o Exílio espoliado de tudo, tirando se lhe mesmo as roupas do Seu uso.

Não lhe poderam roubar a corôa real do martyrio mais nobre de resignação que o mundo viu, nem essa nobreza de caracter que, entre outras, este documento confirma.

Publicamol-o hoje e bem a proposito.»

 

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