Uma Patologia das Organizações?

A teoria da organização proposta por Michels acarreta algumas consequências entre as quais avoluma a redefinição da democracia. Rousseau avisara para o problema da delegação de poderes, inculcando a ideia de que o soberano colectivo não era susceptível de ser representado por outro que não ele próprio. Michels, que é um adversário consequente de Rousseau, prova justamente o mesmo, sendo o seu livro “maldito” como que um comentário à tese do pensador de Genebra. Representação é oligarquia e oligarquia é desvio de fins: a alienação da vontade da massa votante é inevitável.

Historicamente, a participação de toda a população nas decisões, quer na formulação das propostas, quer no debate, tornou-se inviável pelo processo crescente de complexidade das funções e pela rápida ampliação da dimensão das sociedades. Os gestores, directores, chefes, como Michels repetidamente sublinha, tornaram-se tecnicamente indispensáveis. Trata-se de uma demonstração histórica, que nem Popper pode iludir com comentários argutos sobre a frase de Péricles: «Embora só poucos possam originar uma política, todos somos capacitados para a julgar»
[1]. De facto, os poucos estrategicamente posicionados fazem a tal política, que eventualmente virá a ser julgada por todos. Permanece o facto dos poucos fazerem a política que implica e envolve directamente os muitos. Neste relacionamento bipolar repousa o problema da representação e o próprio conceito de democracia, que coloca na electividade a marca da própria legitimidade do poder exercido, atribuindo-o à massa votante.

O facto das oligarquias serem eleitas, como fez notar Mosca também, por camadas populacionais cada vez mais vastas, em nada afecta a tese organizativa: «Encontramos em toda a parte eleitores e eleitos. Mas também encontramos em toda a parte um poder quase ilimitado dos eleitos sobre as massas que elegem»
[2]. Com efeito, Michels pensa que os representantes, na maioria dos casos, estão fora do alcance da massa dos eleitores e, quando muito, só grandes eleitores poderão exercer sobre eles alguma influência, mas até esses «grandes eleitores» são incapazes, por si mesmos, de penetrar no corpo oligárquico[3]. Liminarmente, «a primeira eclosão de uma direcção profissional marca para a democracia o princípio do fim»[4].

As massas heterogéneas das sociedades modernas não são susceptíveis de ser representadas, consequentemente os representantes veiculam tão só a sua vontade individual. Um especialista em organizações, como é o caso de Amitai Etzione, não tem dificuldade em concordar que embora as chefias se originem por via electiva e possam ser mudadas pelos seus membros, «a oligarquia prevalece em muitos países e numa grande diversidade de organizações»
[5].

Assim, como verá Michels a democracia? Como «um ideal que nunca terá para a história humana outro valor senão o de um critério moral que permite apreciar, nas suas oscilações e nuances mais ligeiras, o grau de oligarquia imanente a todo o regime social»
[6]. O inquérito sobre a democracia é no fundo saber em que medida ela é possível, desejável e realizável na conjuntura.

Na óptica de Michels, por conseguinte, nas democracias pode-se e deve-se continuar a falar da oligarquia política, isto é, de uma classe de indivíduos profissionalmente dedicados à competição e exercício do poder, que os obriga, normalmente, à aceitação do sufrágio popular com última decisão. Este, contudo, mais que exprimir uma vontade originária e livremente formada, plebiscita opções dos aparelhos partidários ou pronuncia-se sobre escolhas que eles previamente estabeleceram. As oligarquias partidárias seleccionam e impõem os nomes que se apresentarão ao eleitorado, nomes que terão que ter aceitação no topo da hierarquia e cujo processo de selecção dá hipótese ao reforço dos controlos hierárquicos por prémio e castigo e oportunidade à prática de uma certa cooptação, que só amplia e aprofunda as tendências oligárquicas, pois mais que um método de escolha é uma táctica de manutenção, de integração de novos elementos na estrutura decisional sem suscitar instabilidade.

O princípio oligárquico é uma tendência inquietante enquanto característica organizacional, tão inquietante que Mitzman preferiu colocá-lo na origem da decepção sindicalista e socialista do autor, considerando o seu percurso como uma psicopatologia do idealismo político
[7]. Serão os casos observados por investigadores sociais nos terrenos das seitas religiosas, das empresas económicas, das organizações criminosas, meras patologias?[8] Amitai Etzioni argumentou que o fenómeno inventariado por Michels se revela, sobretudo, nas organizações que se desviam dos seus fins e que no futuro nada impede que uma oligarquia utilize o seu poder para estabelecer uma estrutura democrática[9]. Mas talvez com mais verosimilhança a oligarquia se apegue ao poder com todos os seus meios até não poder mais mantê-lo, ou desestratifique, conservando o máximo que pode ser mantido naquela circunstância.

Argumentaram Leornard e Philip Selznick que é necessário estudar casos concretos e investigar as forças que expandem a tendência oligárquica e as que a debilitam, sempre com grande cautela
[10]. Mas Michels não só supôs a oligarquia como regra, como ainda estabeleceu o desvio dos fins. Se se aplicar a distinção feita por Carl Friedrich entre fins ideais e fins materiais, ou noutra linguagem, interesses de princípios e interesses de conveniência, verificar-se-ia que a tese de Michels estabelece que os interesses de princípio decaem à medida que a organização sociopolítica alarga, cresce, ganha responsabilidades e se diversificam as suas perspectivas sobre o futuro[11]. Um partido heterogéneo evitará posições acutilantes no domínio dos princípios, inclinando-se ao mesmo tempo para fazer concessões a leques de interesses que talvez se revelem contraditórios. As finalidades deslizam para os fins materiais, mas estes não garantem de forma alguma a adesão das áreas vastas que se encontram fora da organização, pois só os fins não materiais são aglutinadores a esse nível enquanto fórmula política mobilizadora[12].

O afastamento dos princípios é também uma eventualidade que anda longe de ser rara e o reforço dos princípios de conveniência é normalmente feito a favor de uma burocracia intermédia, que se concentra na aplicação estrita das regras e regulamentos, mesmo contra o espírito da organização. A burocracia pode originar, produzir e instrumentar, o desvio das finalidades formais como teorizou Robert Merton, mas é ainda suporte do próprio poder da oligarquia que é fundamentalmente burocrático
[13]. Daí o conselho tão repetido pelos inimigos da oligarquia de aligeirar a estrutura burocrática[14].

Assim, Michels afirma, no conjunto dos seus escritos, a inevitável marcha para a burocratização, para o afastamento das finalidades restritas e formais, que equivale a insinuar um princípio de degradação e, finalmente, a lei de ferro das organizações. Com risco de ser considerado um cínico, Michels escreveu: «Seria um erro abandonar a desesperada empresa de descobrir uma ordem social que torne possível a realização completa da ideia de soberania popular»
[15]. Com efeito, face às leis enunciadas, que esperança restaria para a aplicação concreta da ideia? Daí que, recomendando embora a investigação e a procura infatigável para “descobrir o indescobrível” e vaticinando bons resultados na clarificação da ideia da democracia, que é, de resto, o que ele tenta fazer no seu livro, insinue que o máximo, afinal de contas, é incontestavelmente «uma aristocracia de pessoas simultaneamente boas do ponto de vista moral e eficientes do ponto de vista técnico. Mas onde iremos descobrir tal aristocracia?»[16].

A solução empurrou-o mais tarde para a formulação do princípio da liderança de um chefe popular, legitimado pela adesão das massas. Giordano Sivini vê nesta opção do sociólogo italo-germânico a lógica superação da exigência oligárquica de dominação de caminho com a esperança num socialismo libertário, sempre viva nele. A massa perde a sua posição subalterna e, rompendo o esquema burocrático, recupera através de um laço carismático uma função activa no plano da acção política, que toma só então a primazia relativamente à economia
[17].

Se é certo que a solução de Michels pode e deve ser discutida, pois é também uma opção ideológica, a verdade é que as suas observações fundamentais já o são muito menos. Numa última edição do seu clássico sobre os partidos políticos, Maurice Duverger avalia o livro de Michels como um «excelente livrinho» e comenta que «aí se descrevem em termos sempre actuais as tendências oligárquicas dos organismos de massas»
[18]. Como poderosa conclusão do seu trabalho, Duverger dirá: «Nunca se viu um povo governar-se a si mesmo e nunca se verá. Todo o governo é oligárquico, o que necessariamente comporta a dominação de um pequeno número sobre o grande»[19].

As deduções de Duverger ratificam plenamente o cerne do «excelente livrinho». A problemática de Michels, lançada em termos empíricos, e depois teorizada como se viu, não é o espectro de Meisel. Ao contrário: escreve Giovanni Sartori, fundamentando-se em recentes trabalhos empíricos, que as incisivas teses de Michels são hoje em dia mais penetrantes ainda. Mancur Olson, H. Kariel, Seymour Lipset, fornecem-lhe argumentos e factos com que ele não hesita em proclamar: «Hoje há mais razões que nos princípios do século para recear que as predições de Michels estejam bem fundamentadas»
[20].

O desmentido mais óbvio às expectativas de Meisel provém dos Estados Unidos pela mão do historiador Arthur Schlesinger Jr., nos finais dos anos 80. Historiador progressista, activista, conselheiro do Presidente Kennedy, criado à sombra dos grandes historiadores socialistas americanos que dominaram a cena académica entre as duas Guerras e que viram o processo americano como um vasto campo de batalha entre os elementos democráticos e as forças detentoras dos privilégios, é justamente ele que repõe a actualidade dos temas da elite. Escreve literalmente: «Quem diz organização, diz oligarquia. Os historiadores quase não precisavam de Pareto, Mosca e Michels para demonstrar este ponto. A questão mais séria não é a existência da elite dirigente, mas sim o seu carácter»
[21]. Talvez um estudo de história fosse necessário para descobrir, como sugere o autor norte-americano, aqueles conceitos operativos, mas o facto é que se os materiais históricos foram condição necessária para que fossem formulados – a exemplificação e o recurso aos dados históricos são intensos nos três autores estudados – não eram suficientes. O estudo da conjuntura vivida, o interesse nas transformações sociais, mesmo uma certa paixão pelo futuro, revelaram-se ingredientes indispensáveis para explorar intuições profundas, que já vinham abrindo caminho desde os reflectidos textos de Platão.

E, na verdade, o estudo de mais dois clássicos mostrará como a observação directa, ao lado de uma erudição histórica e política, consegue arrancar conclusões independentes, onde se recortam harmoniosamente as teses avançadas pelos três pensadores centrais.
- António Marques Bessa, Quem Governa?
___________________
[1] Cfr. K.R. Popper, The Open Society and its Enemies, Op. cit., nota 85, vol. 1, pp. 7 e sgs.
[2] Robert Michels, Sociologia dos Partidos Políticos, Op. cit., p. 238.
[3] Idem, ibidem., p. 25.
[4] Idem, ibidem., p. 23.
[5] Amitai Etzione, Organizaciones Modernas, UTEHA, México, 1965, p. 20.
[6] Robert Michels, ibidem, p. 240.
[7] Cfr. A. Mitzman, Sociology and Estrangment: Three Sociologists of Imperial Germany, Knopf, Nova Iorque, 1973.
[8] Cfr. Alain Woodrow, As Novas Seitas, Edições Paulistas, Lisboa, 1979.
[9] Amitai Etzione, Ibidem., p. 20. Num sentido semelhante vai a tese de John D. May, que pretende demonstrar a compatibilidade, em Michels, entre organização e democracia. Cfr. John D. May, «Democracia, Organização, Michels», in Maria Stella de Amorim (Organizadora), Sociologia Política II, Zahar, Rio de Janeiro 1970, pp. 101-128.
[10] Leonard Broom e Philip Selznick, Sociology, Harper and Row, Nova Iorque, 1977, pp. 219-221.
[11] Cfr. Abraham Kaplan e Harold Lasswell, Poder e Sociedade, Universidade de Brasília, 1979, pp. 71-76.
[12] Daqui decorrem as duas linguagens dos partidos, segundo a sua posição relativamente ao poder.
[13] Cfr. Robert K. Merton, Social Theory and Social Structure, The Free Press, Glencoe, 1957, pp. 197 e sgs.
[14] Cfr. Edgar Morin e outros, A Burocracia, Sociocultur, Lisboa, s.d. pp. 55-64.
[15] Robert Michels, Political Parties, Op. cit., pp. 367-368.
[16] Idem, ibidem, p. 370.
[17] Cfr. Giordano Sivini, Op. cit., nota 566, p. 47.
[18] Maurice Duverger, Les Partis Politiques, Armand Collin, Paris, 1981, p. 21.
[19] Idem, ibidem, p. 553.
[20] Giovanni Sartori, Teoria de la Democracia, 2 vols., Alianza Editorial, Madrid, 1988, vol. 1, p. 195. E também: Mancur Olson, The Logic of Collective Action, Harvard University Press, Cambridge, Mas., 1965; H. Kariel, The Decline of American Pluralism, Stanford University Press, Stanford, 1961; e S. M. Lipset, Political Man, Doubleday, Nova Iorque, 1960.
[21] Arthur M. Schlesinger Jr., The Cycles of American History, Op. cit., nota 26, pp. 428-429.

posted by Nacionalista @ 11:49 da tarde,

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